RIR É FAZER AS PAZES CONSIGO MESMO

Entrevista concedida em 13.08.2012 por Carlos Biaggioli à Adeli Ferreira no seu programa da Rádio Mundial: "Homeopatia, a Saúde do Ser"

Adeli Ferreira – Este programa sempre traz um texto ou algo assim como ponto de partida para alguma reflexão. Hoje será diferente. Está aqui um grande amigo, Carlos Biaggioli, criador do Palhaço Delfino Anfilófio Petrúcio, PhD em Charme, Beleza, Elegância, Gostosura e Sapiência, formado pela Universidade da Modéstia e pós-especializado em Coisíssima-Nenhuma-e-Algo-Mais! Vamos conhecer um pouco sobre o trabalho que ele desenvolve...

Carlos Biaggioli – Obrigado, Adeli, por esta oportunidade de compartilhar com seus ouvintes a pesquisa que a gente desenvolve desde a fundação do Teatro de Rocokóz, em 1998, mesma época em que, a partir da experiência com o palhaço no ambiente hospitalar (que se irradiou pelo mundo inteiro, incluindo o Brasil), a gente viu que, sim, o riso tem uma função social bastante importante e desejou descobrir como se colocar diante disto com o nosso ofício.
Palhaço é um ofício. A gente milita, nas redes sociais e em todas as oportunidades que nos aparecem, para desvincular a palavra “palhaço” do xingamento, da imagem pejorativa. Por que protestar, por exemplo, contra a corrupção ou qualquer coisa ruim usando a máscara do Palhaço? A nosso ver, ela tem uma função diametralmente oposta, que é canalizar a energia da alegria (um dos conceitos que o ser humano mais deixa de lado). Ciléia, minha esposa, sempre provoca nossos alunos: “A alegria ainda é considerada algo supérfluo”.
– Ah, eu não tenho o que fazer agora, então vou ser alegre um pouquinho, porque eu sou um homem sério, tenho minhas preocupações, eu tenho que... eu tenho que... eu tenho que... E, com isso, ao irmos deixando a alegria de lado, poucas vezes se pensa no conceito: o que é “alegria”?
A partir deste trabalho que a gente começou a fazerno ambiente hospitalar em 1996, a gente percebeu que a alegria é um estado-de-espírito. A gente só consegue estar alegre quando está íntegro. E a alegria tem o tempo que a alegria tem, totalmente permeado de momento presente. Ninguém consegue ser alegre no passado ou no futuro, porque já foi ou ainda não veio. Só se consegue estar alegre estando íntegro no momento presente. Então, nos hospitais, a gente começou a observar os pacientes, fosse criança, adulto ou idoso. Aliás, diga-se de passagem, a gente também logo percebeu que a atuação de palhaços junto a crianças era quase como “chover no molhado”, “pregar para convertido”! Tanto é que foi uma criança que nos levou para atuar com os adultos:
– Vamos lá, Palhaço! Os tios estão precisando de você mais do que eu...
– Só se você for comigo!
– Eu vou de “enfermeira”... – e nos conduziu para lá, para lidar com os adultos e idosos.
Lá, havia pessoas prostradas, mas totalmente medicadas, tudo dentro dos conformes. Então, como a pessoa não estava bem? Não estava viva, mesmo (não somente no sentido clínico do termo): não bastava estar respirando, com os olhos abertos ou o coração batendo. Nada disso. Estar vivo seria estar vivendo uma surpresa, um momento agradável, sentindo vontade de se levantar.
Assim, a gente começou a fazer algumas experiências com a nossa arte. A gente chegava, observava um pouquinho para perceber o que é que a pessoa estava sentindo falta, naquele momento. Às vezes ela queria bater um papo, outras vezes ela queria cantar ou ouvir uma música, ali, tocada para ela, enfim, ela queria um relacionamento humano, mais próximo. Ela queria tocada...
Adeli – Olhada...
Carlos – Tocada por dentro! Há pessoas que fazem isso nos locais de convalescença através de rezas ou de diversas outras formas; no nosso caso, a gente foi buscar fazer isso através do Humor, ou seja, serenatas para as pessoas mais idosas; ou, para crianças muito pequenas ou pessoas em estado de certa letargia, mas que estava, dentro de um certo nível, conscientes, a gente unia imagens (bolhas de sabão) com música. A gente foi descobrindo conforme o tempo foi passando e foi vendo, cada vez mais, que, conforme a gente surpreendia a pessoa com estímulos de alegria, a pessoa se modificava no leito. Ou ela se virava para um dos lados, ou ela levantava a mão para reagir à brincadeira e algumas até chegavam se recostar na cabeceira, sozinhas. Isso a gente via como um “ato de se levantar, de sair da prostração”. Essa certeza, então, veio de uma forma muito natural e empírica.
Depois a gente resolveu estudar, a velha história: fazer os outros falarem pela gente, corroborando aquilo que a gente acredita. Naquela época, chegou às nossas mãos o livro “A Psicossomática do Riso”, do francês Henry Rubinstein, que eu traduzi do Espanhol. Ele serviu de base para a gente tentar compreender o que uma boa gargalhada provoca no organismo humano. Em “O Tao da Física”, o físico quântico Fritjof Capra define a gargalhada “como um momento de iluminação”. O Rubinstein demonstrou, sistematicamente, que, durante uma gargalhada, a gente consegue, organicamente, massagear nossas vísceras e nossos aparelhos respiratório, digestivo, reprodutor e cardíaco, tudo por conta daquele sacolejo que o corpo sofre, num momento de extremo prazer... extrema alegria! É um momento em que todas as amarras da razão se rompem, nem que seja por meio segundo: a tal iluminação referida pelo Capra, isto é, quando o ser vai além de si mesmo e se integra. Alegria é uma possibilidade em que o ser humano consegue estar UNO. Sou capaz de apostar com você: quem está alegre raramente julga, nem a si mesmo e nem ao outro; raramente quer mal. É um momento em que ele se congraça com quem está ao seu redor.
Há, porém, níveis e níveis de estímulos de alegria, não é? Vai da piada chula aos momentos genais do Chaplin, nos quais o riso nos leva a camadas de lirismo que perduram até para a vida toda, a gente continua pensando naquilo. No nosso ponto de vista, essa é a função do Riso.
No que diz respeito à questão da cura, quando a gente ri, na verdade a gente está fazendo as pazes com determinadas coisas. As pazes, mesmo! E é com a gente mesmo. A gente até pode rir do outro, mas está fazendo as pazes com aquilo que a gente sente a respeito do outro, com o olhar que se tem do outro. É tudo com a gente mesmo. A risada tem esse feito curador e curativo.
É importante que a pessoa faça as pazes com o seu ridículo (palavra esta que é o “temor dos temores do mais temido temor temido”!). RIDÍCULO: todo mundo tem pavor de ser. Por que? O que é ser ou estar “ridículo”? Nós escolhemos como conceito disto aquilo que foge do padrão vigente na sociedade em que a gente vive, portanto, aí estão as nossas crenças religiosas, sociais, familiariares, educacionais, midiáticas, etc., tudo que constitua padrões considerados “normais”. O ridículo é o contrário do normal.
Então, para a gente conseguir estar bem, rir de si mesmo – que é o objetivo que a gente persegue nos nossos “Retiros de Palhaço” – é importante que a gente olhe para dentro, ou seja, no espelho: não tem outro jeito. Que detecte aquilo que na gente foge ao padrão e, por isso, a gente tenta (às vezes desesperadamente) ocultar. E que a gente dance, brinque com isso e faça com que isso seja gostoso – primeiramente para si mesmo. Quando a gente consegue fazer de forma que seja gostoso para a gente, a gente faz as pazes com a nossa originalidade, com essa nossa lógica própria, com esse nosso modo de ver e sentir a vida, de se relacionar e de sentir o outro, e de perceber que não existe o lado de fora, que está todo mundo junto e misturado, quando a gente faz essas pazes, brinca e consegue rir disso, pronto! Ali houve uma cura.

Adeli – No conceito da Homeopatia de “caminho de cura”, ela não significa a gente negar ou excluir algum processo, muito pelo contrário: você dá um medicamento ou alguma coisa que mostre ao organismo aquilo que precisa ser transformado, e então curado. É esse olhar no espelho o caminho pelo qual a gente pode curar qualquer coisa, pois projeta o que a gente tem e, daí, é possível transformar com mais leveza, com mais graça, com mais tranqüilidade.
Carlos – No caso da busca do Palhaço, no nosso trabalho já faz tempo que a gente abriu mão de acreditar que a gente “dá curso para palhaços”. Não, o nosso curso visa o auto-conhecimento, o que pode ser usufruído inclusive por palhaços e atores. Pelos “retiros” já passaram cineasta, PhD da USP, dona de casa, jornalista, músico, roteirista, estudante e gente de tantas outras áreas. A máscara vermelha do palhaço (a que menos esconde e mais revela) é um pretexto que a gente oferece para que as pessoas tenham oportunidade de fazer essas pazes, olhando para si mesma e sendo colocada em situações monitoras de exposição. É algo que a gente desenvolve desde 2004, portanto, a gente já tem determinados graus de certeza... É, portanto, um pretexto para que o “retirante” detecte o que nele é só dele e que, assim, cause no outro uma impressão gostosa, risível.
Nesse percurso, a gente acaba até conseguindo trazer à tona os “fontes perniciosas” de riso: o deboche, o escárnio, a ironia, o cinismo. A gente não vai ser ingênuo de negar. Mas não ninguém chega à outra margem se não atravessar a ponte – e, de preferência, queimá-la, porque, às vezes, a pessoa não consegue queimar a ponte e permanece no zigue-zague até que definitivamente resolva largar mão dessas coisas e partir para um novo tipo de humor. Todo tipo de humor é saudável, uma vez que ele reflete o ponto em que a pessoa se encontra na caminhada. Isso tem que ser respeitado. Você gosta de piada chula? Maravilha, mas que se tenha consciência de que você está nesse ponto até o momento em que você se cansar dele e ver que há outras camadas de humor também tão boas e que vão lhe trazer novos tipos de sacações, percepções e tudo o mais.
Esse trabalho tem nos tem trazido muita alegria e muitos desafios, pois a gente toca em determinados pontos das pessoas em que elas até acabam se achando num beco sem saída. No entanto, quando, ali, as outras pessoas começam a rir desse tipo de situação (impressão), o “retirante” na maior parte das vezes acaba percebendo que essa energia que ela gera – e que é só dela! – move alguma coisa boa na turma. Então, acaba fazendo as pazes com isso e descobrindo que não está nem num beco e nem sem saída. Descortina-se um mar de possibilidades novas pela frente e que a vida é bem mais leve, mais tranqüila. Todo mundo está junto, ninguém tem carteirinha-de-santo, pois, se tivesse, não estaria mais nesse planeta. A gente é feito da mesma matéria e a gente está “condenado a ser feliz”.

Adeli – Não tem escapatória!
Carlos – O nosso “retiro” é um curso intensivo em sistema de confinamento, no qual as pessoas ficam hospedadas durante quatro dias em nossa sede, atualmente situada na região de Parelheiros, numa belíssima chácara em meio à Mata Atlântica. Nesses dias, a convivência é a nossa principal ferramenta e os “retirantes” pernoitam em sistema de acantonamento, passam por massagem, meditação e também uma alimentação especialmente pensada. Enfim, é uma oportunidade para que cada um tente, no dia a dia, se abrir para o fato de que, na realidade, a alegria é uma energia que deveria estar entre os pratos principais do cardápio da Vida, pois ela reflete quem a cada um é. Em outras palavras: dize-me o teu grau de alegria e eu te direi em que ponto do caminho da evolução tu estás.
As pessoas ainda cultuam demais a tristeza e a seriedade como caminho da “remissão de pecados”. É o contrário! Lembra daquela definição: “enquanto o homem pensa, Deus ri”¿ A gente vive muito no passado ou no futuro e, com isso, perde as jóias que a vida vai colocando diariamente na nossa frente. Ontem mesmo, um vaso de flor me arrebatou! Meu Deus do céu, como o ser humano se arvora numa condição de genial e não é capaz de criar uma flor daquela. Eu sei que a arte é um dom humano, mas criar algo com vida tão delicada, fiquei impressionado..

Adeli – A gente fala de coisas muitas sérias, ditas tão importantes, e acaba esquecendo de conversar sobre essas coisas. A finalidade da gente olhar com responsabilidade para vida não é forjar a vida com um padrão de rigidez e formalidade, muito pelo contrário. A formalidade é só necessária, mas não é a finalidade. A finalidade é estar vivo, livre, feliz consigo mesmo.
Carlos – É só uma bússola, não é o Caminho.
Adeli – Segundo o criador da Homeopatia, a finalidade da Cura é que a gente esteja livre para atingir os mais altos fins da nossa existência: ser feliz.
Carlos – Um caminho para isso é a gente conseguir rir de si mesmo. O resto vem por conseqüência. A gente perde muito tempo se levando demais a sério. A gente não sabe de onde veio nem para onde vai. A única certeza que a gente tem é o momento presente. Será que vale a pena desperdiçar essa única certeza estando triste?
Adeli – Muito obrigada.

ENTREVISTA À RÁDIO MUNDIAL (2012)

Entrevista concedida por Carlos Biaggioli a Samira Chahine, levada ao ar pela RÁDIO MUNDIAL, em 21/01/2012, no programa “Mundial e Você”.
Samira – Hoje, no primeiro bloco, eu tenho o prazer de receber Carlos Biaggioli, bom dia.
Biaggioli – Bom dia, Samira. Obrigado pelo convite e obrigado a todos os seus ouvintes que hoje estão aqui, comigo, para compartilharem um pouco da minha história.
Samira – E é uma história muito fantástica. O Carlos é ator, dramaturgo, roteirista e arte-educador, mas, acima de tudo, ele é Palhaço! Podemos falar que ele é um clown?
Biaggioli – Podemos falar que é palhaço. “Clown” é o termo em Inglês para a mesma coisa, que é “palhaço”. Agora, treinamento clownesco é um bom termo, porque é um treinamento já reconhecido em várias partes do mundo, aí fica mais fácil para as pessoas reconhecerem. Mas eu gosto da palavra “palhaço”...
Samira – Me conta um pouquinho desse seu interesse pela arte circense, conta um pouquinho da sua história, pra gente te conhecer.
Biaggioli – Eu estou muito feliz, porque em 2012 eu completo 30 anos de carreira como Palhaço. “Carreira” pressupõe profissão, não é? Como eu comentei com sua colega Megh Luz, aqui na Rádio Mundial, “Palhaço” é uma profissão, inclusive regulamentada pelo Ministério do Trabalho. Então, a gente defende a bandeira de tentar mudar esse jargão popular que associa palhaço (palhaçada) à tolice, à asneira, à bobagem, a xingamento... Não, palhaço é profissão, aliás, uma das mais antigas da face da Terra. Os cômicos atravessam a História, fazendo a História. Os bobos-da-corte tinham o poder de fazer a cabeça dos grandes reis, dos grandes líderes, e dedicavam suas vidas a isso. Os palhaços de hoje não são diferentes. A palhaçada (no bom sentido) se transferiu para a televisão, para o cinema, para o teatro, também para o picadeiro, de onde o palhaço saiu já faz umas três décadas no mínimo. Quando o Circo viveu uma fase de transição, o palhaço descobriu que o campo dele poderia ser bem mais amplo, incluindo o picadeiro, que é o berço, onde ele esteve pelo menos durante os três ou quatro últimos séculos, com presença sempre muito marcante.
Samira – Da corte para o picadeiro...
Biaggioli – E do picadeiro para o mundo! Hoje em dia, esses grandes programas humorísticos têm essa base. Se você for fazer algum curso com os maiores ícones de formação de Palhaço, você vai ver que toda a estrutura que todos os que se dedicam a estudar essa linguagem têm que fazer contato, você vai ver tudo ali nos programas de televisão, nos antigos humorísticos das rádios, que deram base ao que existe hoje na televisão e no cinema. Enfim, o Palhaço é uma arte milenar. E, durante esse ano, eu quero comemorar muito esse meu aniversário, porque, nesses 30 anos, graças a Deus eu tive oportunidade de experimentar quase todos esses “palcos”, vamos dizer assim. Foi desde de animação de festinha infantil, uma escola maravilhosa no sentido de me ensinar a me relacionar com as pessoas dentro da comédia, onde eu passei 12 anos. Hoje, por exemplo, o meu grupo, o Teatro de Rocokóz, tem um projeto chamado “teatro de intervenção”, no qual não há platéia e não há cena: é uma coisa só. Eu sou o palhaço, você é minha expectadora e a cena é responsabilidade de nós dois.
Samira – A gente pode interagir? O tempo todo?
Biaggioli – Aliás, a gente deve. Dentro da proposta do Teatro de Intervenção a cena só acontece com a responsabilidade compartilhada entre o artista e o seu expectador, porque eu tenho a minha bagagem pessoal e você tem a sua bagagem pessoal. É no encontro entre essas bagagens pessoais que sai a situação cômica que diverte quem estiver assistindo aquilo.
Samira – E por que fazer rir, Carlos?
Biaggioli[risos] E por que não?!
Samira – Sim, mas que efeitos produzem o riso, pra você, que já trabalhou com “risoterapia”?
Biaggioli – Sim, em hospitais. Foi nessa época que eu tive oportunidade de traduzir (no meu parco Espanhol) o livro “A Psicossomática do Riso”, de Henry Rubinstein, que serviu de base para os nossos estudos. Boa pergunta, essa sua. Poucas pessoas percebem mas Deus não faz nada de graça, não dá ponto sem nó. Como disse o Einstein: “Deus não joga dados”, é tudo muito planejado. Segundo o Fritjof Capra, um grande nome ainda vivo da Física Quântica, fazendo um paralelo com a cultura oriental, que busca a Iluminação e tudo aquilo que os ocidentais ainda têm uma certa dificuldade de compreender, ele diz que “no momento da gargalhada acontece a iluminação”. Ali tudo se desprende. Na gargalhada o ser se abre inteiramente para o que está acontecendo, ele vive o momento presente na sua completude. E olha só que genial: ao mesmo tempo, a gargalhada faz uma massagem em todos os sistemas do corpo, digestivo, respiratório, cardíaco, sexual...
Samira – Ao mesmo tempo? Fantástico!
Biaggioli – Ao gargalhar, e balançar o corpo por fora, aquilo está ocasionando, por dentro, uma série de contrações e descontrações que vai massageando todos os órgãos e vai liberando um produto chamado endorfina cerebral – que é o anestésico que Deus criou e não o nosso “genérico”. Por isso, a sensação arrebatadora de bem-estar que a gente sente, similar à sensação que a gente sente depois de fazer amor, quando a gente se entrega e fica, por alguns momentos, naquela zonzeira. É a mesma coisa que produz uma boa gargalhada. Isso as pessoas não percebem. Com Palhaço, a gente acaba aprendendo que geralmente as pessoas não dão muita bola para o simples, mas para o complicado. Nós estamos nessa fase da humanidade, dando mais importância ao complicado do que ao simples. E se esquece que, na verdade, o simples é a coisa mais complicada que existe. Conquistar a simplicidade não é um princípio; é conclusão de um processo, na maior parte das vezes, de uma vida inteira! E, como Palhaço, nesses 30 anos, eu fui tendo que entrar dentro de mim e me escarafunchar... Eu uso uma frase do Rubem Alves: “milho nenhum vira pipoca sem passar pela fervura”. Esse é o cerne do nosso trabalho com os Retiros de Palhaço. Com aRisoterapia a gente percebeu que era mais importante riscar um fósforo na penumbra do que acender a luz debaixo do sol e foi para esses ambientes de convalescença, de isolamento, de exclusão...
Samira – Onde rir é difícil...
Biaggioli – Não, é quase um desafio. De vez em quando, a gente chega nuns lugares que parece que a nossa proposta chega a ser uma falta de respeito com o outro. “Como é que você pode querer me fazer rir, onde já se viu!?” Eu tenho um colega, o Palhaço Carlão (Lincoln Rolim), que já animou velório, contratado pelo defunto! O trabalho tocou tanto, que ele deixou escrito para a viúva. E lá foi o palhaço para o velório, chorar com seus óculos... E aí, como é que faz com o restante das pessoas que estão ali, querendo exercer uma convenção de que aquele é um lugar de se estar triste? Me diz, Samira, se estou mentindo: velório não é um dos lugares que mais se ouvem piadas? [risos]
Samira – Pois é. As pessoas não se vêem há muito tempo e, na hora que vão pra fora, é onde vêm as histórias!...
Biaggioli – Então, é este o lugar que eu entendo ser o do palhaço. Há outras linhas e formas de encarar o palhaço, essa é a forma como o Teatro de Rocokóz e o nosso projeto, o Retiro de Palhaço encara a função social do palhaço: “O Palhaço está aqui pra fazer a gente rir de si mesmo”... e isso não é pouco.
Samira – Rir de si mesmo, rir da sociedade...
Biaggioli – Ao rir de si mesmo você questiona a sociedade, porque você é a sociedade. Uma das frases que mais me irritam, hoje em dia, é aquela: “Ai, isso é Brasil!”, como se a pessoa estivesse fora, não fosse brasileira, não fizesse parte daquilo que hoje é ser brasileiro. É a mesma coisa...
Samira – Eu sou Brasil, não é?
Biaggioli – Eu sou Brasil! Não estou Brasil, eu sou Brasil. Agora, por que é que eu sou Brasil? Isso cada um que converse com Deus...
Samira – É a sociedade que faz o país, não é?
Biaggioli – Exatamente. E quando a gente ri de si mesmo a gente se desapega de determinadas coisas. Mas, Samira, eu estou falando do riso saudável. Não estou me referindo ao deboche, ao escárnio, à ironia, ao cinismo, nada de vilão-de-novela. Eu estou falando daquele riso que vem das entranhas, das tripas, de dentro, rasgando e limpando, sai e irradia, contagiando e todo mundo vai junto. É verdade: o riso realmente é contagioso!
Samira – É!
Biaggioli – Você vê na ritualística da Seicho No Ie, os japoneses têm o hábito de, em determinado momento, começar a rir, nem que seja forçando, porque você força só durante os primeiros segundos...
Samira – É um exercício!
Biaggioli – É um exercício em que as pessoas começam a rir de si mesmas, porque se acham patéticas rindo e, aí, começam a rir de verdade. E, ao rirem de verdade, começam a rir umas das outras. Olha só que reação em cadeia isso gera!
Samira – E, às vezes, uma piadinha simples faz com que a gente dê aquela gargalhada gostosa! Mas de onde vem a criatividade nessa hora em que você está interagindo com o público? Eu sou público, você é o palhaço, a gente está interagindo. Você improvisa muito?
Biaggioli – Existe um estudioso de Teatro, italiano, chamado Dario Fo, que, no seu livro “O Manual Mínimo do Ator” afirma: “Triste do expectador incauto que acredita que um artista improvisa”. Na verdade, é como se fosse um grande alquimista que, feito um mágico, tira da sua bagagem aquilo que é necessário para aquele momento. E faz isso de uma forma tão cotidiana, tão coloquial, tão natural que a pessoa que está olhando acha que ele inventou agora. Não, ele não inventou agora. Ele foi buscar aquela solução na sua bagagem pessoal, no seu repertório. E isso não se aprende na escola – ali você pode ir buscar a base, determinadas técnicas. Mas esse poder de lidar com as cartas debaixo da manga, isso só a prática é que traz. E não se pratica diante do espelho, mas no suor, no sentir o olhar do outro. Isso se praticaerrando: o erro é o “anjo da guarda” do Palhaço!
Samira – Uau!!!
Biaggioli – O Palhaço que foge do erro (e infelizmente existem muitos, principalmente os que estão começando) está estrepado-de-verde-amarelo-azul-e-branco! Da mesma maneira que as religiões fazem seus altares, todo Palhaço deveria fazer um altarzinho para Nossa Senhora do Santíssimo Erro, porque é o erro que nos traz toda possibilidade de gracejos, graça, piadas e formas engraçadas de se relacionar, não é? Então, esse é o segredo do improviso. Você quer me fazer sofrer, me dá um texto pra eu decorar. Agora você fala pra mim: “Carlos, pega o seu palhaço, o Dr. Delfino Anfilófio Petrúcio”...
Samira – Ele é filósofo?
Biaggioli – Ele é filósofo! Ele explica tudo o que você quiser... No microfone aberto da Megh Luz me veio uma pergunta bem difícil, de uma pessoa que estava em uma situação de muita tristeza. E foi uma relação bacana, porque eu tive que reverter aquilo, mostrar o que é que aquilo tem, não de engraçado, mas onde é que estaria a luz do fim do túnel que não fosse a da locomotiva. Então eu fui levando a pessoa junto, construindo juntos o pensamento. É dessa forma que as coisas acontecem: a gente constrói o pensamento junto com que está nos assistindo. Então, você quer me fazer sofrer? Carlos: decora. Quer me fazer feliz? Carlos, o contexto é esse, beleza? Beleza! Eu sou capaz de fazer uma história de quatro ou cinco horas, ali, só indo buscar na minha própria experiência, como no filme “Quem Quer Ser um Milionário?”, em que o rapaz ia buscar na sua própria bagagem as respostas para o show-quizz. É a mesma coisa, a gente vai buscar lá, já viu determinada coisa, vem na cabeça, uma pulga atrás do orelha, passou o passarinho que deu uma idéia...
Samira – Você aproveita tudo o que acontece ao seu redor?
Biaggioli – Qual é o segredo? Estar no momento presente. Se você ficar fora dele: babau!
Samira – E isso dá pra ensinar?
Biaggioli – www.retirodepalhaco.blogspot.com [risos]!!!
Samira – Retiro de Palhaço! É um projeto que vocês tem?
Biaggioli – Eu e minha esposa, Ciléia Biaggioli. Aliás, é um projeto que ela começou em 2004, na nossa sede. De 2009 para cá a gente vem fazendo mais ou menos de 2 em 2 meses. Agora, em janeiro, pela primeira vez aconteceram três edições seqüenciais e, em fevereiro, estaremos em Juazeiro do Norte (CE), levando até lá o Retiro.
Samira – Que legal! E como é que é, o que acontece nesse Retiro de Palhaço?
Biaggioli – Acontece a “fervura”. A nossa sede atualmente fica em Parelheiros, numa casa muito grande em estilo colonial, um lugar muito bonito, com trilha, que faz parte processo do Retiro, em meio à Mata Atlântica, numa área de preservação ambiental...
Samira – Imagina! Fazer trilha no meio da Mata Atlântica, de nariz vermelho!!!!
Biaggioli – Pois é! É um curso em sistema de confinamento, durante o qual as pessoas passam quatro dias vivendo a sualógica própria. É aí que está o coração da coisa. Qual é a sua “lógica própria”, Samira? Talvez você não vá conseguir me responder de imediato...
Samira – Seria a pessoa se auto-reconhecer, não é?
Biaggioli – Se reconhecer! A gente, seres humanos, sempre viveu em sociedades, cada qual com seus padrões. E a sociedade exerce a padronização pela escola, pelas diversas linhas religiosas, enfim, por vários mecanismos que fazem com que o ser humano vá se adaptando. Esta palavra (“adaptando”) é o cerne do trabalho de muitos terapeutas, hoje em dia. Eles vão adequando, ou seja, vai-se envolvendo a Originalidade de cada pessoa em um sistema de padrões, para torná-la igual. Então, quando ela não é “igual”, ela se torna uma pessoa “ridícula”. O que é o ridículo no nosso ponto de vista? É aquele momento em que a pessoa foge ao padrão. Geralmente esses momentos são engraçados – há alguns que não são engraçados, mas a maior parte é. Esses momentos são muito ligados ao Palhaço por conta disso, porque o Palhaço faz palhaçada, logo, é um ser ridículo, fora do padrão. Mas ele está fora do padrão olhando para o padrão! Ele não é um louco. A diferença entre o Louco (no sentido psiquiátrico da palavra) e o Palhaço é que o Palhaço vai naquele lugar em que o Louco está mas sabe o caminho de volta. O Louco fica lá! E, aí, “cada louco com sua mania”, como diz o ditado popular, não é? Vai saber o que é que ele está vivendo lá. Com certeza, infelizmente, naquele estado ele parece mais feliz do que ele era antes. O ideal é que ele fosse feliz em um estado de sanidade. Então, o que é que o nossoRetiro de Palhaço busca? Estreitar, o máximo possível em quatro dias, cada “retirante” da sua própria Originalidade, para que ele consiga se ver como ele é, independentemente dos padrões. E que ele o faça usando, por instrumento, o Nariz Vermelho, que cada qual recebe desde o início. Esse Nariz Vermelho é responsável por 50 por cento do trabalho, que só acontece a partir do momento em que o retirante cumpre os seus 50 por cento. O que é descoberto na própria originalidade, a máscara potencializa, amplia!
Samira – O Nariz vai me dar mais coragem de me expor?
Biaggioli – É. A gente espera que, com o tempo, você não precise mais dele para ter essa coragem, não é? Mas ele é ocrachá, vamos dizer assim. Hoje em dia o Palhaço já está em quase todos os lugares. Se eu vou a uma empresa com minha cara normal e, lá, digo algumas coisas do meu ponto de vista palhacesco, sou capaz de ser expulso pelos seguranças.
Samira – É um louco que está passando por aqui...
Biaggioli – Exatamente. Está desrespeitando um local de trabalho, vamos dizer assim. O mesmo em um hospital ou num centro religioso, até mesmo num picadeiro. Agora, se eu faço a mesma coisa com um Nariz Vermelho, as pessoas vão falar: “Ah, tá, é um Palhaço! Então pode”.
Samira – Ou seja: há um respeito.
Biaggioli – Há uma licença, conquistada nesses milhares de anos de História do Palhaço. É isso o que a gente busca nosRetiros de Palhaço, que está disponível para acontecer em todos os lugares, dentro e fora da cidade de São Paulo.
Samira – É para qualquer pessoa?
Biaggioli – A partir de 16 anos. Já houve participação de idades menores. Minha filha mais velha fez com 11 e hoje faz parte da produção do Retiro, pois o Teatro de Rocokóz é um grupo teatral familiar.
Samira – E todo tipo de pessoas procura por vocês? Profissionais liberais... Em vez de fazer um curso de Teatro para perder a timidez, procuram um curso de Palhaço?
Biaggioli – Sim, aliás, eu fiz um mapeamento puro e simples e a maior parte de “retirantes” não é de palhaços ou de atores ou de estudantes de Teatro, mas de profissionais de outras áreas: cineastas, donas-de-casa, jornalistas, PhD da USP, biólogos, estudantes...
Samira – São pessoas que vão para se reconhecerem...
Biaggioli – Auto-conhecimento. Nós não temos formação terapêutica, nossa formação é teatral, mas a gente lida com uma questão que não há como negar: é de auto-conhecimento.
Samira – Mexe com o emocional. Você estava explicando sobre a risada, que mexe com todo o seu sistema de saúde e também com o seu emocional.
Biaggioli – E mexe também com a alimentação. Minha esposa pesquisou um cardápio diferenciado para esses quatro dias, onde há a exclusão de determinadas coisas, como o café preto e o açúcar branco, por exemplo, e a inserção de determinados produtos da dieta natural que estimulam e potencializam determinada sensibilidade e percepções. Então, juntando alhos com bugalhos, isso com aquilo, e tudo com jogos intensivos que iniciam às seis horas da manhã e não tem hora para terminar, tem pessoa que tomba com o Nariz Vermelho, acho que é pra fazer palhaçadas nos sonhos.
Samira – Esquece de tirar o crachá!
Biaggioli – É! Tem medo de perder a licença... É uma coisa bastante intensiva, mesmo. A gente trabalha também com massagem durante o Retiro...
Samira – Ai, que delícia! Melhora o humor das pessoas? Elas já chegam bem-humoradas?
Biaggioli – Elas geralmente chegam com muita expectativa, beirando o medo [risos]. Sabe aquele negócios que, em nível geral, diante do espelho, as pessoas têm de se acharem 2 quilos a mais ou a menos do que acham o ideal? A gente nunca se acha “bem” quando se olha do jeito que é. A gente sempre acha que tá um pouco a mais ou um pouco a menos. Aí a gente, na coordenação, pede: “Olha pra si mesmo e mostra o que você tá escondendo”. Silêncio total. Clima. As pessoas suam. “Me mostra quem você é. Eu só estou pedindo uma coisa simples, vai... e, de preferência, me faz rir com isso!” Aí só falta pintar o fundo musical de suspense, sabe? PAPAAAAMMM!!! Mas, ao final, você olha nos olhos dessas pessoas e percebe que houve transformação; que, como dizia o Wilhelm Reich, ali se quebraram couraças muito velhas; que se cutucou algumas coisas que estavam adormecidas e precisavam vir à tona; e principalmente essa questão da “lógica própria”. Todo bom palhaço você vê que ele está no mundo dele e você ri e se encanta com isso. Os grandes palhaços eram assim! Ele está nos mostrando qual é a forma dele de ver o mundo, qual é a bagagem pessoal dele, qual é o depoimento pessoal que ele tem pra imprimir no mundo em que ele vive hoje. Por isso é que ele não é um louco, porque o louco não tem essa capacidade. O Palhaço é o cara que vai lá, no seu próprio porão, e traz pra você uma Flor... é isso.
Samira – E você faz esse tipo de atividade em escolas, empresas?
Biaggioli – O Teatro de Rocokóz atua por empreitadas. Neste mês, por exemplo, o Retiro fez parte da formação de um grupo, cujo projeto foi contemplado pelo ProAC, um edital da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Então, é uma empreitada fechada. Isso pode acontecer em qualquer lugar, desde que sejam respeitadas as condições necessárias para a sua realização. A gente precisa de uma casa, onde haja privacidade e estrutura para que as pessoas convivam durante o Retiro, pois a convivência é uma das ferramentas utilizadas no processo. Respeitadas essas condições, qualquer lugar é possível de ser feito um Retiro de Palhaço. Em qualquer parte do país.
Samira – Quem quiser entrar em contato com vocês, para onde telefona e aonde obtém mais informações?
Biaggioli – O nosso telefone é (11) 5975-4022 e o nosso blog é www.retirodepalhaco.blogspot.com. A gente está aberto para dar as informações necessárias e também para conversar sobre PALHAÇO, seja em escolas, empresas ou com quem tiver vontade.
Samira – E parabéns pelos 30 Anos de carreira!
Biaggioli – Obrigado. Eu quero muito desejar a todos vocês um ano repleto de PAZ & HUMOR e desejar também que, em 2012, o mundo não acabe e tudo se transforme, tudo seja novo. A humanidade vive uma nova fase e a Alegria, neste nova fase que a humanidade se coloca, vai ser fundamental inclusive para separar o joio do trigo, se é que vocês me entendem... [risos]
Samira – Se é que vocês me entendem!!!
Biaggioli – Samira, muito obrigado pela oportunidade. Parabéns pelo seu programa e muitos anos de vida para ele.
Samira – Gente, vamos para o intervalo comercial. Daqui a pouquinho a gente volta com mais um super-bate-papo aqui no “Mundial e Você”.